Relações diplomáticas

Paulo Rebêlo
Revista Backstage – Janeiro 2007

O ano de 2007 terá muito a nos ensinar em matéria de relações diplomáticas e principalmente, como o MP3 exerce um peso econômico bem maior do que prejuízos estimados de gravadoras e downloads gratuitos de usuários domésticos. Um dos temas abordados neste espaço, durante os últimos anos, foi o sucesso da indústria em aterrorizar usuários leigos que baixam música de graça pela internet. Um dos reflexos – há outros, claro – foi o crescente desaparecimento de sites, pessoais ou não, com arquivos MP3 e informações técnicas sobre conversão, gerenciamento, novos formatos e outros assuntos de interesse a profissionais e entusiastas. Há anos que você não encontra mais sites sobre MP3. Quando encontra, é um “fake” para lhe passar vírus ou uma tentativa de vender música pela rede em formatos proprietários e fechados.

Diante do cenário de desolamento, é previsível que, ao surgir uma “oferta” de qualidade que consiga ultrapassar as barreiras jurídicas impostas pela lei americana de direitos autorais, automaticamente se crie uma “demanda” acentuada por parte de milhões de usuários que se acham no direito de fazer downloads gratuitos de música. É um direito procedente ou não? Por hoje, não discutiremos o assunto, que também já foi abordado nestes anos de Backstage. O que vale a pena conhecer e até estudar é como alguns sites simplesmente conseguem quebrar todas as regras que você imagina conhecer e, ainda por cima, se manter de pé diante de gigantes como aglomerados de gravadoras e governos de países desenvolvidos.

Sim, quem já descobriu do que estamos falando, é mesmo sobre o AllofMP3 da Rússia. Quem usa programas do tipo P2P (peer-to-peer) para baixar software e jogos piratas pela internet, com certeza, deve ter uma lista de sites que criam índices de links que podem ser usados em softwares específicos, como eMule ou o protocolo utilizado pelo BitTorrent. Em sites do gênero, há oferta de todo tipo de material pirata e, não surpreendentemente, de vez em quando são notícias na imprensa mundial por conta de processos judiciais. Nos últimos anos, vários sites do gênero foram “derrubados” pela Justiça e hoje estão no limbo digital.

O AllofMP3 é diferente.

UM PESO, DUAS MEDIDAS –
O esquema do AllofMP3 é óbvio pelo nome. Oferecer zilhões de álbuns e faixas musicais. De graça? Não, o serviço é pago. Uma ninharia. Você pode fazer o download de um álbum inteiro por US$ 2,00 (dois dólares), às vezes até menos. Faixas soltas de um disco podem ser compradas por centavos de dólar. Em outras palavras, com menos de US$ 100 (cem dólares) você pode ter uma imensa biblioteca musical no seu disco rígido do computador. Nos Estados Unidos, supostamente o país mais prejudicado pelo AllofMP3, um álbum nas lojas não custa menos do que dez dólares – a não ser naquelhas velhas promoções de 9,90. Mas, em geral, álbuns custam entre dez e vinte dólares, basta pesquisar em lojas de comércio eletrônico do país ou perguntar a qualquer americano.

Há anos, o AllofMP3 existe e é conhecido pelas autoridades americanas e pelas gravadoras. Há anos, a indústria e os governos tentam convencer o governo da Rússia a tirar o site do ar e prender os criadores. Nunca conseguiram. O que ocorre, não é difícil de entender. Cada país possui suas próprias leis de direitos autorais e, no caso da Rússia, a lei do copyright é extremamente mais flexível do que nos Estados Unidos. Um exemplo claro disso, adotado pelo AllofMP3, é que os álbuns que você compra pelo site não são em alta qualidade. As músicas são codificadas em 128 kbps ou 192 kbps, que é mais do que suficiente para escutar no computador e até fazer uma pequena festinha caseira, mas insuficiente para usar em um aparelho de som potente ou até mesmo fazer edições profissionais. A taxa de 128 ou 192 kbps é a utlizada pela vasta maioria das pessoas nas MP3 caseiras, ou seja, aqueles usuários que querem apenas escutar música, não são fanáticos por áudio em busca da prima qualidade. Quem estiver atrás de qualidade máxima de som, para usar em microsystem e aparelhos profissionais, trabalha com MP3 codificadas/convertidas a, no mínimo, 256 kbps – o que gera um arquivo de tamanho notadamente maior.

Pelas leis da Rússia, o AllofMP3 nunca foi ilegal e continua não sendo. Quem não tem medo de fazer compras pela internet, faz a festa pelo site. As leis russas de copyright podem ser comparadas, mantendo as devidas proporções, às leis de alguns países nórdicos, notadamente a Suécia. Fica na Suécia o site ThePirateBay.org, um dos maiores indexadores de conteúdo pirata da internet atual, no protocolo Torrent. Uma dúzia de vezes a indústria cinematográfica tentou tirar o “empreendimento” do ar, até conseguiu umas duas vezes, mas em menos de 48h o site volta ao ar. Por que? Por um motivo extremamente simples: soberania. Se o site está hospedado na Suécia, submete-se às leis da Suécia, não às leis norte-americanas de copyright ou qualquer outra coisa. Quando tentam tirar o site do ar, os advogados da indústria – fonográfica, cinematográfica ou qualquer que seja – estão se baseando na lei deles, dos Estados Unidos. Não é assim que a banda toca, não em países desenvolvidos (como a Suécia) ou que ainda sustentam o conceito de soberania nacional (como a Rússia).

Não se trata de definir o que é certo ou errado. É, na verdade, mais uma questão de natureza técnica. “Dura lex sed lex” diz o famoso ditado jurídico. A lei é dura, mas é a lei. No caso da Suécia e da Rússia, ainda podemos parafrasear Fernando Sabino e dizer que “dura lex sed latex”, ou seja, a lei é dura, mas estica. Para os ricos. O que países como Rússia e Suécia fazem, do ponto de vista jurídico, não é diferente do que os Estados Unidos também faz com a lei quando é do interesse deles: esticam e esticam mais, até achar uma brecha que os beneficie. Ou, se não encontram, alegam soberania nacional. Acontece diariamente nas reuniões das Nações Unidas e em vários tratados internacionais os quais os americanos não fazem parte, mas o resto do mundo é pressionado a fazer – como o tratado de não-proliferação de armas nucleares e o Protocolo de Kyoto, só para citar dois deles.

O AllofMP3 foi parar nas Nações Unidas.

ONU e OMC –
O “problema” do AllofMP3 foi parar na mesa dos engravatados da Organização Mundial de Comércio. Tantos anos de pressão dos Estados Unidos, enfim, repercutiu. Não como os americanos esperavam, mas pelo argumento mais funcional em relações diplomáticas: a troca de favores. Oficialmente, no finalzinho de 2006 a Rússia aceitou tirar do ar o AllofMP3 e, ainda, aceitou rever a lei nacional sobre direitos autorais para torná-la menos flexível e mais parecida com a lei norte-americana.

A medida contra o AllofMP3 foi clara. A Organização Mundial do Comércio, que supostamente engloba dezenas de países, e não apenas os Estados Unidos, objetivou a entrada da Rússia na organização apenas mediante a queda do AllofMP3. Uma pré-condição, segundo os documentos oficiais que podem ser facilmente obtidos pela internet. Ou seja, não é uma condição sine qua non, a Rússia pode rever a lei de direitos autorais, tirar o AllofMP3 do ar e, ainda assim, ficar de fora da Organização Mundial do Comércio.

Ninguém sabe quando o site estará, definitivamente, fora do ar. Mas, hoje, a maioria dos analistas de indústria não acreditam mais que a Rússia consiga manter o AllofMP3 no ar. Até o fechamento desta edição, o site continuava no ar, vendendo música feito quem vende água mineral no Rio de Janeiro, com os links bem visíveis para o usuário entender e saber o porquê de o AllofMP3 ser um serviço legalizado na Rússia.

Porta-vozes do governo russo, por outro lado, confirmam que a Rússia aceitou rever a lei de copyright, mas garantem que não há previsão para que qualquer alteração seja concluída. Um dos representantes do AllofMP3, em entrevista ao site britânico de tecnologia The Inquirer, garantiu que os dias não estão contados para o AllofMP3.

Eis aí uma novela que vai valer a pena acompanhar este ano.