O limbo entre a ilegalidade e a imoralidade

Paulo Rebêlo
Revista Backstage
Fevereiro 2003

A cada dia que passa, a indústria fonográfica tenta barrar judicialmente — às vezes tecnicamente — a propagação de música pela internet. É um esforço progressivo e contínuo, porém até agora inócuo. Achar o último lançamento do mercado, álbum inteiro, ainda é mais fácil do que roubar doce de criança. Não são apenas as bandas estrangeiras ou da moda. De Britney Spears a Adoniran Barbosa, basta usar as ferramentas certas e, de preferência, ter uma conexão rápida para fazer o download e depois gravar em CD para escutar onde quiser.

Muitos acreditam que se o pioneiro Napster não tivesse sido bombardeado judicialmente e fechado, os prejuízos das gravadoras teriam sido bem menores. Até porque, ficou-se sabendo depois, o interesse maior era o de usar o Napster como uma ferramenta das próprias gravadoras para vender música pela Internet. Não foi à toa que a Bertelsmann investiu milhões no projeto. Com o fim daquele programinha, surgiram dezenas de alternativas não apenas melhores, como também mais rápidas e eficientes. A pergunta que costuma ser feita é sempre a mesma: “Como reverter isso? Como impedir o troca-troca de músicas protegidas por direito autoral?”

Fazer o download de um álbum inteiro, que nas lojas custa cerca de trinta reais, é imoral? Pegar um álbum protegido pela lei de direitos autorais, copiar e distribuir na web é, sem dúvida, ilegal. Agora, se também é imoral, aí é outra história. Furar a fila no banco, por exemplo, não é ilegal. Mas, certamente, é imoral. A associação entre ilegalidade e imoralidade é perigosa, e a indústria, de modo geral, tenta aproveitar esse ponto fraco. A decisão resta a você: músico, consumidor, usuário.

Toda obra intelectual é fruto de um trabalho árduo. É evidente a necessidade de haver remuneração a fim de que o artista possa sobreviver. Não apenas o artista, pois a remuneração é o piso de todo profissional. Resta-nos saber quanto dos trinta reais em questão chega aos responsáveis pela criação, composição e performance das músicas. Resta-nos saber se o artista poderia sobreviver se parasse de fazer shows. Melhor ainda, resta-nos saber se muitos desses artistas “pop” de hoje teriam o público que têm, nos shows, se fossem conhecidos apenas pelas pessoas com poder aquisitivo para comprar seus CDs originais e pela publicidade oficializada.

São dúvidas já amplamente debatidas na imprensa, mas foram poucas as pessoas a questionar o atual modelo de remuneração e a política de repasse das grandes gravadoras. Estas, por sua vez, alegam que possuem uma infinidade de custos: publicidade, produção, logística… e assim continuam mantendo os preços. E enquanto o bate-boca persiste, o barraqueiro que vende CDs piratas na esquina, agradece.

Ou as bandas tentam aproveitar a tecnologia existente para tentar divulgar suas músicas ou então continuam de forma passiva e deixem que as gravadoras continuem brigando na Justiça para defender “seus” direitos. E Papai Noel existe, claro.

NÚMEROS QUE NÃO EXPLICAM — No final do ano passado, uma pesquisa feita por engenheiros de computação da Microsoft apontou ser em vão todas as tentativas da indústria fonográfica de acabar com a troca de música pela Internet. Os pesquisadores Peter Biddle, Paul England, Marcus Peinado e Bryan Willman acreditam que a popularização dos sistemas de troca de arquivos e as melhorias na organização dessas redes vão, eventualmente, tornar impossível o fechamento delas. Que novidade.

Poucos meses antes, a Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF) revelou um estudo no qual aponta que o mercado de CDs falsificados responde por 40% de todo o setor no Brasil. Segundo a APDIF, somente no país existem cerca de 14,3 mil sites ilegais que liberam faixas para download. A associação diz que pela primeira vez (em 2002) a pirataria reduziu a venda de CDs, na ordem de 5% sobre o ano interior. A suposta perda para o setor é de R$ 33,6 bilhões.

O que esses números não explicam é que a estimativa do “prejuízo” é calculada levando em consideração os CDs que poderiam ter sido vendidos se não fosse a pirataria. Acontece que, mesmo sem pirataria, esses mesmos CDs também poderiam ficar nas prateleiras, sem venda alguma. Se um adolescente pega de graça, pela internet, vinte álbuns diferentes para escutar em casa, não significa que ele fosse ter dinheiro para comprar os mesmos vinte álbuns que gostaria de ouvir. É uma lógica simples, porém realista. Quem tem dinheiro o suficiente para comprar os CDs dos músicos prediletos, sempre que saem? Estimativas do gênero são como poeira em alto-mar.

UM POUCO DE HISTÓRIA — As opiniões que carregamos são frutos de uma carga social que envolve diversos fatores, como experiência de vida, senso crítico, conhecimento técnico, bagagem cultural, educação formal, personalidade, laços familiares e assim por diante. No entanto, é preciso distinguir opinião de fatos. Em História, costuma-se fazer a distinção entre fato histórico e verdade histórica. São duas coisas completamente diferentes, mas que podem ser usadas de forma tendenciosa e com algum propósito, ético ou não. Às vezes, este propósito é o de jogar no mesmo barco o fato e a verdade histórica — atitude que, há tempos, tem sido adotada por razoável parcela da indústria em relação ao consumidor.

Imagine a cena: você está parado no trânsito, duas da madrugada, voltando para casa. Quando olha para o lado, vê a esposa de um amigo (que supostamente deveria estar em casa) no banco do passageiro de outro carro, com um cara qualquer. No outro dia, a dúvida: você conta ou não conta? Optando por contar, restam a você duas opções: ou diz que a viu na madrugada anterior com um cara desconhecido em um carro que não era dela; ou já chega dizendo a seu amigo que a mulher dele é uma sirigaita e o está traindo.

O que você viu, é um fato histórico. Ninguém pode negar que ela estava lá, dentro do carro, às duas da madrugada. Agora, o que você vai escrever e dizer, pode vir a tornar-se uma verdade histórica. É a sua verdade histórica, porém não necessariamente a verdade histórica do fato. Ela poderia ter passado mal e algum parente a teria levado ao hospital; ela poderia ter ido socorrer uma pessoa amiga e não quis dirigir, então chamou um primo ou tio. E assim por diante. Resta a você, acreditar ou não.

Talvez por causa da profissão, nem sempre ouso falar sobre minhas verdades históricas; mas, em fatos históricos. Fato é que copiar músicas e distribuir é uma atitude antiga e até hoje nunca se conseguiu controlar. Conseguirão, no futuro? Talvez, se inventarem uma tele-tela similar a de George Orwell no clássico “1984”. Outro fato é que, muitas vezes, nos consideram tolos e ignorantes.

OS BOTOCUDOS — O álbum Tribalistas conseguiu vender muito em pouco tempo. Não cabe a este espaço questionar a qualidade das letras e das canções, mas fato é que para muita gente os tribalistas Brown, Antunes e Marisa Monte são os descolados da MPB, os neo-tropicalistas. E ficou a ver navios quem comprou o CD nas lojas e voltou para escutar em casa enquanto trabalha no computador.

Em Tribalistas, a EMI cravou uma maracutaia anti-cópia no CD de forma a impedir com que você, que pagou [caro] por aquele produto, pudesse escutar no computador. Não foi a primeira vez, nem a segunda, que situações assim ocorreram em tempos recentes. E em todas elas, a impressão parece ser a mesma: daqui a pouco, não vamos ter poder de escolha algum. Este signatário, por exemplo, não possui nenhum aparelho de som em casa. Para tal finalidade, usa o computador. Se quiser fazer uma reunião, é só preparar uma coletânea de vários CDs, jogar no Winamp [www.winamp.com] e aumentar o som. Não comprei Tribalistas por uma questão de gosto, mas imagino a frustração de quem comprou e levou para escutar no trabalho.

No disco dos Tribalistas, há uma lacuna/divisão entre as faixas de dados e de áudio, colocada de um modo a fazer com que o Windows não reconheça a porção do áudio. Detalhe: apenas o Windows, porque em computadores com Linux e Macintosh, a pueril gambiarra não funciona.

Então, se você quiser ouvir Tribalistas no computador, tem que usar um programa (player) próprio, embutido no CD, e escutar versões em baixa qualidade sonora. A premissa é a de que quem escuta no computador é um pirata em potencial e vai copiar as faixas para o disco rígido e distribuir na internet.

Os tribalistas são eles, mas os índios somos nós? Nem tanto. Um dia após o lançamento de Tribalistas, o CD inteiro já estava disponível na Internet, para quem quisesse. É ilegal. Será também imoral?